As memórias de África


 
Já escrevi as minhas memórias de África. Uma coisa muito parecida com arrumar um armazém de batatas. Um armazém arejado, seco, de luz amarela, bem cuidado, com algum pó da terra das batatas. Mas bem tratado. África estava dentro de mim como as batatas estão num gigante monte a um canto de um armazém.

Comecei por pegar numa primeira batata. E depois seguiram-se 10 744 batatas (palavras). Quinze páginas A4 de rajada, sem qualquer lógica de organização que não fosse pegar em cada batata e pô-la num outro lugar. As ideias chegaram, aleatoriamente, sem ordem. Indiscriminadamente peguei e pousei-as, sem tentativa de arrumar por tamanho, cor ou grau de conservação. As podres, as grandes e gordas, as com bicho, as mais verdes.

Fez-se uma nuvem de poeira imensa, típica de quem arruma um armazém de batatas, que depois assentou. As batatas lá ficaram, cada uma sobre o chão, alinhadas, sem ordem, apenas lado a lado, visíveis e direitas. O monte foi desfeito.

Há meses que começou uma obra aqui na rua. O armazém das batatas, onde eu tanta vezes brinquei, foi vendido juntamente com o seu terreno imenso para a construção de 21 apartamentos. As batatas foram desfeitas e feitas em T2 +1, duplex com garagem. A Avó da Marta morava ao lado do armazém das batatas, com um dos filhos. Talvez por a Avó ou o Tio lá trabalhar, nós íamos para lá brincar. E o melhor de tudo eram as batatas fritas que a Avó da Marta fazia. Cortadas às rodelas fininhas, com pouco óleo, e uns pingos de sal. Uma delícia. Ninguém me tira a memória das batatas - não havendo já Avó da Marta nem armazém, não sabendo o que será feito da Marta, nem tão pouco do seu Tio ou família.

África é terra, uma terra que só por si alimenta e gera vida. E que coisa com mais grumos de terra e capaz de alimentar uma pessoa que não uma batata!

As minhas batatas estão escritas. Dediquei-as ao Martim. E são para ficar no armazém, seco e arejado. E começam assim:

Memórias de África

Para o meu filho Martim.

São os cheiros. Estou a escrever sobre África por causa dos cheiros. O cliché total acerca de África confirma-se.
Hoje foi o Palmolive “Almond Milk”. Pelos vistos o que comprava cá para casa era o “Honey” e hoje abri um pacote de “Almond”. Tive de o cheirar várias vezes. Igual. Lá também comprava sempre sabonete que pelos vistos era Almond. A base do duche de cimento frio, a casa de banho sem tecto, quatro paredes com uma porta entre o nosso quarto e o corredor da sala e da cozinha. Na casa de Pemba.

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